Passo a explicar: por exemplo, tenho o pior acordar do mundo e tenho plena consciência de que absorvi esse gosto por dormir do meu irmão mais velho. Lembro-me de ter praí uns sete anos e correr (à hora de almoço que hoje é também para mim hora de dormir) para o acordar, abanando-o insistentemente enquanto gritava uma nova música que tivesse aprendido na aula de inglês. E o pobre coitado aturava, adolescente vindo das noitadas ansioso por mais dez minutos de sono, mas às vezes atingia o seu limite - que é hoje o meu, também.
Da minha avó materna guardei o gosto pelas viagens, o paladar doce e o amor pelas palavras. Ainda sei de cor todas as lenga-lengas, tenho gravado o sorriso dela bem fundo na memória, os cabelos brancos, o cheiro a lavado das batas de trazer por casa, o jeito gozão com que me respondia ''onde?'', quando eu lhe pedia qualquer coisa e dizia ''ó vó, anda lá...''
Tenho uma caixa de música na minha mesinha de cabeceira que me foi dada pela avó paterna que não me lembro de conhecer, mas que música alguma me deixa esquecer que tive. Fundamentalista, sindicalista, de esquerda - mesmo que por vezes discorde, saio politicamente aos lados do meu avô paterno.
Tenho um gosto por línguas que devo à professora primária que me ''obrigou'' a ser uma joaninha na peça de teatro em inglês que representei no 2º ano, e um ódio pela disciplina de História que advém da professora-demasiado-gorda-para-usar-cintos-a-meio-da-barriga.
Sou teimosa como a minha mãe, resmungona como o meu pai. Devo à minha mãe todas as lições de força e ao meu pai a vontade de continuar rumo ao dia seguinte, apesar da bagagem. Sou um pássaro porque o meu pai assim mo disse um dia, e tenho a certeza de que nunca me contentarei com homem algum inferior a ele, que em todos os Dias da Criança me recebia com um ramo de flores. Dos meus sobrinhos recebo os ecos da minha infância, da minha cunhada um exemplo de mãe-super-mulher. Das minhas primas guardo duas infâncias: uma criou-me, outra doía-me longe por não podermos ser criadas juntas; e hoje são duas mulheres tatuadas na minha história.
Do A. absorvo o amor pelos animais, o coração maior do que a caixa toráxica, o rancor pelos maldosos que não merecem perdão - mas o perdão por todos aqueles que merecem ajuda. Da I. mais de dez anos de sintonia inexplicável, madrugadas a bordar personalidades como naperons, velhinhas as duas, a esquecermo-nos do chá ao lume... e da H., corpo banda-desenhada, sempre tão convicta e tão capaz de mudar, sempre a semear novos horizontes e ideias, a arriscar mais do que eu própria ousaria, como que a espicaçar-me, sempre.
Os meus PartyPeople. Um por um a fazerem mossa, a escreverem-me a história. Cada traço de cada um a fazer-me tanta falta, em concordância ou discordância. Almas gémeas, porque com eles nada me falta. Um organismo vivo, um pulmão extra, uma espera.
Sou tanto mais de tantos outros. Sou o amor por borboletas desde criança, quando a minha mãe resolveu coleccionar miniaturas de borboletas de porcelana que ainda hoje me fitam através do vidro do expositor. Sou cada filme animado da Disney, com as vozes, as falas, as cores e as músicas. Devo o meu desleixe informático ao meu irmão engenheiro: em casa de ferreiro, espeto de pau.
Ao F. devo-lhe a dança e a forma como muitas vezes uma gargalhada pode ser a solução. E como nem sempre a solução está nas nossas mãos, devo à F.César a certeza da vida pralá da eterna derrota.
Das incertezas do caminho, levo os traços mafiosos do P., e a doçura de termos ambos mudado com o tempo.
Sou tanto mais de tantos mais momentos. Num sentimento de pertença que não é de posse, sou deles e eles são meus, agora tatuados, no meu entender das coisas.
Esqueçamos o mau. No fundo, são essas as raízes que qualquer pessoa-árvore tem, fazendo-a prosseguir: em cada pedaço de outros e de outras histórias, revemos a nossa certeza de pertencer a um mundo, apesar das dúvidas de lhe pertencer. E é isso que, a cada passo, faz tudo valer a pena.
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