Percebemos sempre, mesmo quando até a nós mesmos mentimos,
escolhendo acreditar que o que acontece à nossa frente não é de todo a verdade.
Percebemos sempre. Quando nos mentem. Quando
nos querem. Quando nos deixam.
Percebemos sempre, mesmo quando nem os outros
percebem.
Há dias acordei com uma dor de cabeça tão grande que quase
pude jurar ter o peso do mundo nos meus ombros, culpa das noites mal dormidas,
culpa do mal que ando a fazer, culpa desta solidão filha da puta e desta falta de
orientação e do medo pelos dias que correm.
Tenho vinte e três anos e estou sozinha. Vivo com os meus
pais por que até de os deixar tenho medo. Adoro os meus amigos, mas há coisas
que nem a eles consigo contar, de tão assustada que fico com o meu ser
retorcido. Não vejo os meus sobrinhos tanto quanto gostaria e tenho saudades de
ter um animal. Um animal não, um cão.
O último animal que tive durou um ano e meio na minha vida e
cortou-me o coração com uma tesoura de bicos redondos, daquelas que damos às
crianças, mas por fora do picotado. E fiquei com o peito desfeito,
estraçalhado, com um sorriso fantasma e um olhar vazio durante meses. A verdade
é que com todo o tempo que passou, já não consigo sentir nada de bom ou mau.
E agora reconheço que nem a infelicidade dele me poderia fazer mais feliz: não
me alimento do mal dos outros e nem me lembro que ele existe – só quando muito
ocasionalmente me apercebo de que poderia ter conhecido e amado um Homem a
sério, e nunca o fiz.
Em vez disso escolhi-o a ele, e isso faz de mim uma péssima
pessoa no que toca a decisões. Quando nos enganamos desta forma ficamos a repensar tudo o resto que decidimos, pondo em causa até a cor do vestido, o ir
a pé em vez de metro, o Martini em vez da vodka. Quando nos enganamos, ficamos
sem chão – e temos medo de ter de voltar a decidir.
Neste momento estou (sou) assim, uma mulher-prateleira. Por
não querer decidir nada, tenho o mundo à espera. Como fones nos ouvidos com o
iPod em pause. Como um corpo adormecido, sem qualquer tipo de sensações
a percorrerem-no. Como um carro que trava a fundo numa passadeira, mesmo sem ter nenhum peão para a atravessar.
Porque nós percebemos sempre o que se passa... Com os
outros.
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